sábado, 8 de maio de 2010

A Cabala das feiticeiras


Diz a antiga lenda que a cabala (tratado filosófico-religioso hebraico, que resume uma religião secreta que se supõe haver coexistido com a religião popular dos hebreus) foi dada aos antigos eruditos hebreus por um arcanjo, com o objetivo de ajudá-los a vivenciar os mistérios e capacitá-los no auxílio de outras pessoas que viessem a ter semslhante experiência. Com o propósito de estimular o autoconhecimento na busca de um caminho existencial, Ellen Cannon Reed adequa, de forma simples, os rituais da cabala aos rituais da Antiga Religião em A Cabala das Feiticeiras - O caminho pagão e a árvore da vida.Dividido em 19 capítulos, o livro trata também do estudo dos 22 arcanos maiores do Tarô, que sintetiza o processo da jornada existencial conhecido como a Árvore da Vida. Exercícios e meditações para estimular aqueles que realizam estudos espirituais sem a ajuda de um mestre, também se encontram no livro.

Eu Tituba, feiticeira negra de Salém


Maryse Condé

A aldeia de Salem, em Massachusetts, Estados Unidos, ficou famosa no século XVII por uma grande caça e execução de feiticeiras. A histeria provocada por um ambiente rígido e mesquinho fez com que todas as malquistas da aldeia fossem acusadas de bruxaria e condenadas à morte, as que não confessassem, e à prisão as que confessassem e apontassem cúmplices. Tituba, escrava, filha de escrava, é uma das personagens esquecidas dessa lúgubre história. Trazida à luz por Maryse Condé, a voz de Tituba pode ser ouvida neste relato emocionante. Seus amores, decepções, aprendizado e a reviravolta que ocorrem em sua vida quando seu poder, desenvolvido para ajudar as pessoas, começa a ser visto como maléfico.

Quando dormem as feiticeiras



O ano é 1491 e o lugar é o sul da França nas proximidades das velhas cidades de Albi e Cordes. Este livro conta a história do que restou de uma irmandade misteriosa e fascinante de feiticeiras-lobas. Mulheres de beleza extraordinária, fortes e orgulhosas de suas existências, dedicadas, ainda que naqueles tempos da inquisição, à magia antiga. Mas isso é apenas parte do seu mistério envolvente, pois muito mais será revelado nessa história que extrapola o comum e o ordinário, mesmo para os dias de hoje. Após a traição da líder, uma outra assume, ela tem o nome druida de Urtra. Nela foi depositada as últimas esperanças para conduzir e salvar a tradição, a magia antiga e os ensinamentos revelados.


“No sul da França, velhos carvalhos destilam os crepúsculos de uma outrora vida por um enigma que vive no coração de muitos. Cantai, cantai com todo amor, recordai minhas aventuras e minhas alegrias, que coração pode ser mais intenso que um coração bruxo? Os lobos uivam, fendendo o tempo, a velhice e a solitude do verbo. Os sentidos bruxos mergulham na matéria esquecida e inculta, desnudando-a de sua capa desonesta. Doces vozes ciganas clamam por minhas feridas e uma certa saudade impura. É chegada a hora para o mistério que me inclina sobre a face do perdão e da fúria. Nada mais me vigia. O corpo me reconhece na sua pintura carnal uma trama de estrelas quando rodeado de pessoas nuas e pelo testemunho do sol vestal das fogueiras. Um único passo devolveria meu império de segredos e um punhado de flores maduras, mas preferi as janelas daquele olhar de centenas de luas e uma mulher que não seria única.”


Medricie será iniciada na magia, e sua vida nunca mais será a mesma. O contato com Urtra, uma feiticeira-loba, a libertará das culpas e dos medos. Urtra é uma bruxa maior, ligada aos lobos por uma tradição da Magia Natural e a uma fonte de poder que está além deste mundo. O ano é 1491, nas proximidades das velhas cidades de Albi e Cordes até Les Baux de Provence, França. Este livro conta a história do que restou de uma comunidade de mulheres que viviam entre um vale temido, cidadelas e vilas, formando uma irmandade misteriosa e fascinante de feiticeiras-lobas. Mulheres de beleza extraordinária, fortes e orgulhosas de suas existências, dedicadas, ainda que naqueles tempos da inquisição, ao culto do feminino. O lobo representava um portal de comunicação com o mundo espiritual e o poder de manipulação sobre a esfera material e tangível.

A Imagem da mulher feiticeira em Roma

A imagem da mulher feiticeira como expressão da diferença de gênero em Roma: os poemas de Horácio e Ovídio


Por Semíramis Corsi Silva
Os fenômenos conhecidos como magia, feitiçaria e bruxaria, têm despertado um grande interesse em estudiosos de diversas áreas como Antropologia, Arqueologia e História. Nosso interesse inicial pelo tema foi despertado durante o mini-curso “Magia e Poder no Império Romano”, ministrado pelo Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva[i], por ocasião do XX Encontro Nacional de Estudantes de História, no ano de 2000, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Desde então, passamos a reunir fontes bibliográficas e documentais que tratassem, mesmo que em pequenas passagens, o tema da magia no mundo romano, constatando uma superioridade de trabalhos para o período medieval, em detrimento do período clássico greco-romano.
Ainda na fase das leituras bibliográficas, verificamos que as fontes arqueológicas e os dados epigráficos mostravam que o cenário da magia clássica era basicamente masculino. Os papiros e tabletes com imprecações mágicas[ii] descobertos pelos arqueólogos, no território greco-romano, colocavam o homem como o praticante da magia, em superioridade à mulher, geralmente em rituais de magia amorosa. (GRAF, 1994, p. 211). Este dado arqueológico nos intrigou, já que havíamos percebido que nas fontes textuais, na literatura do período do Alto Império Romano, era a mulher que estava representada como feiticeira, seja ela de magia erótica ou de outra natureza.
É importante notarmos que a imagem da feiticeira velha, má, vestida de negro, com os cabelos desgrenhados e unhas compridas é comumente aceita como uma criação da literatura cristã medieval. Porém, mais uma vez podemos notar as influências da cultura romana no pensamento Ocidental, sendo tal estereótipo nada mais que uma criação dos poetas latinos. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é demonstrar a imagem da mulher feiticeira nas obras dos poetas Horácio e Ovídio, ambos importantes poetas romanos, contemporâneos do Principado de Augusto. Visamos compreender possíveis motivações que levaram estes poetas a criar tal representação através da análise de suas obras (mais especificamente dos poemas Épodo III, V, XVI, XVII e Sátira V de Horácio e Os remédios do amor, Amores VIII, Os fastos e Arte de amar de Ovídio), dentro da concepção vigente no período sobre magia, moralização e relações de gênero.

A originalidade de uma pesquisa não depende apenas da investigação de documentos inéditos, mas da colocação de novas questões elaboradas a partir da documentação existente. Desta forma, acreditamos que a abordagem historiográfica do nosso tema se justifique, posto que relacionar práticas de magia e universo feminino em Roma além de ser um assunto pouco estudado contribui para um melhor entendimento sobre o papel da mulher nas religiões pré-cristãs, tendo em vista uma relação de hierarquização entre homem e mulher em diversos aspectos da vida pública e privada.


2) Considerações sobre a magia em Roma
A crença em poderes mágicos pode ser interpretada como um fenômeno sociocultural, sendo recorrente em inúmeras sociedades. Suas origens remontam a tempos e espaços amplamente divergentes, aspecto que funda um consenso entre os estudiosos sobre um conjunto de práticas e representações mágicas inerentes à todas culturas. Tais práticas perpetuam-se ao longo do tempo, influenciando-se e adaptando-se através de uma relação dinâmica junto a outros saberes sociais (SANTOS, 1999, p. 11).

Tal crença generalizada foi amplamente conhecida pelos romanos. Tanto na literatura, em tratados naturais e nas leis verificamos que houve uma grande preocupação dos romanos com a magia. Entretanto, deve-se fazer uma distinção entre a sobrevivência de práticas mágicas na religião oficial e os usos populares da magia. Assim, separam-se as formas de magia entre práticas introduzidas nos rituais de deuses cujo ritual incorporava ritos de cunho mágico (como a festa da Lupercalia[iii], por exemplo) e práticas secretas, consideradas maléficas.
Assim, separa-se as formas de magia em Branca e Negra, termos que permanecem populares até nossos dias e que exprimem intuitivamente a convicção de que do ponto de vista social uma é pública e benéfica, a outra é secreta, anti-social e maléfica na sua essência. Para Anne-Marie Tupet (1976, p. XII), a magia negra se identificaria justamente com as práticas de feitiçaria, havendo na Antiguidade uma distinção análoga entre theurgia (ciência – magia como filosofia fundamentada) e goetia (práticas mágicas vulgares). Jeffrey Burton Russell (1993, p.16) coloca que a forma suprema de magia na Grécia era conhecida como theourgia, o que significava trabalhar coisas pertinentes aos deuses. Uma theourgia benevolente se aproximava da religião. Um grau considerado inferior destas práticas era conhecido como mageia e se aproximava da feitiçaria. Abaixo da mageia estava a goetia, práticas rudimentares, despretensiosas e de cunho mágico. Porém Barb (1989, p. 117) diz ser difícil traçar uma linha entre o bom e o mau porque muitas vezes as duas práticas se misturam[iv].

De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2003, p. 212), Flitz Graf, em estudos de papiros mágicos gregos, demonstrou não haver nenhuma distinção formal entre a prece feita por um mago e aquela feita por um sacerdote. Uma característica da interpenetração destas práticas pode ser evidenciada na evocação (ato de atrair espíritos para auxiliar rituais de magia e adivinhações diferente de invocação, ao de fazer descer o espírito sobre um corpo) de deuses da religião oficial greco-romana nos rituais mágicos.


Na literatura os romanos criaram personagens, buscaram inspirações e referencias nas gregas Circe da Odisséia e Medéia da tragédia homônima de Eurípides, e também se mostraram muito originais, podemos citar vários autores: Plínio, o antigo, Horácio, Ovídio, Virgílio, Petrônio, Lucano, Filostrato, Sêneca e Apuleio. Destaca-se que a maioria dos romanos acreditavam ser tais práticas maléficas e orientais. Para Plínio, o antigo, a magia era uma falsa medicina de origem no mundo persa de Zoroastro, porém ao chegar no solo itálico assemelhou a alguns ritos autóctones (GRAF, 1994, p. 61).


Constatamos que mesmo que representada como uma prática essencialmente feminina pelos romanos, como já exposto por nós, as fontes arqueológicas e dados epigráficos latinos nos revelam uma verdade sobre a magia romana: o cenário era basicamente masculino. Os papiros e tabletes com imprecações mágicas (os famosos defixios, tabuletas de chumbo encontradas em poços, leitos de rios e antigos cemitérios por arqueólogos) colocam o homem como praticante da magia em superioridade à mulher. As imprecações destes tabletes se voltam principalmente para situações de rivalidades e conflitos sociais (amorosos, comerciais, processos jurídicos, disputas esportivas), com a intenção de intervir na ordem dos acontecimentos.


Em relação às leis romanas, o crime de magia foi proibido em toda tradição jurídica latina. Pela Lei das XII Tábuas, escrita em meio a uma sociedade basicamente agrária, o praticante de magia era punido por usar de sortilégios para transportar a colheita de um vizinho para seu próprio campo e usar conjuros para causar danos a alguém. Em ambos os casos a pena era a morte por fustigação. Em 81 a.C. foi instituída por Sila a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis que daí em diante pontuou as ações legais contra a magia. Nesta lei temos a punição àqueles que atentarem contra a vida de outrem a mão armada, a confusão se dava devido ao veneno usado para o assassinato receber o mesmo nome que a poção mágica (veneficium).
Com Augusto vemos o agravamento das penalidades contra magos e adivinhos considerados uma criação de poderes paralelos dentro do Império. Em 33 a.C. Agripa, edil e homem de confiança de Augusto, proíbe a permanência de magos e adivinhos no território de Roma.
É neste sentido de proibição da magia pelas leis e de oposição entre prática (algo colocado pelas fontes arqueológicas como superiormente masculino) e representações literárias (em sua totalidade femininas) que buscaremos compreender as referências à feitiçaria nos poemas de Horácio e Ovídio.

Em relação à magia, Horácio a colocou a serviço das paixões humanas. Seus textos são cheios de detalhes ricos e precisos, cada poema apresenta uma problemática particular, mas em todos aparecem as mesmas personagens e características análogas, variando apenas o tom.
No Épodo III, Horácio descreve a crueldade da feiticeira Medéia em uma tentativa de alertar o amigo Mecenas sobre o perigo de se envolver com tais moças, identificando a magia com a fabricação de venenos. Neste poema já aparece Canídia, feiticeira de presença constante nos seus versos. Muitos estudiosos acreditam ser esta personagem baseada em uma famosa perfumista napolitana amiga de Horácio chamada Gratídia, outros colocam que ela era uma amante do poeta que tendo o rejeitado lhe despertou a raiva. Acreditamos, porém que o nome Canídia tenha sido etimologicamente criado pelo poeta, assim o sufixo canis,i (em latim cachorro) teria sido empregado com o prefixo idius-idia (esbranquiçado). Desta forma, podemos interpretar que Horácio colocou a feiticeira como uma velha de cabelos brancos, comparada com uma cadela, assim Canídia e sua companheira Sagana uivam na Sátira VIII e chama Canídia de cadela esfomeada no Épodo V.
A identificação da bruxa na Antiguidade Clássica com os cães talvez esteja relacionada por serem estes companheiros de Hécate, a deusa padroeira da magia greco-romana. Conforme E. Burris (Apud TUPET, 1976, p. 311), os cães seriam como companheiros das bruxas pelos caminhos errantes da magia negra, sempre noturna, o horário mais propício para práticas ilícitas. Na Idade Média, quando a bruxaria tomará formas judiciais mais sérias e extensivas, este companheiro mudaria para o gato, animal identificado com o demônio e com a traição. Destacamos, porém que são sempre animais noturnos, assim como a coruja e o sapo aparecem em representações, ou seja, é na noite que estas práticas tomam forma.
A bruxa Sagana, por sua vez, teria seu nome vindo do vocábulo saga, que significa feiticeira ou sábia em latim, saga/ae. Por ser a magia considerada um saber pelos romanos, ela seria, desta maneira, a feiticeira por excelência. Segundo Cícero, sagire significa compreender de forma penetrante e por isso se relacionaria a bruxa, aquela que parece saber muita coisa, também os cachorros são chamados de sagaces. (MONTERO, 1996, p. 46). O nome de Folia estaria relacionado a maneira que eram chamadas as cortesãs no grego e Veia seria uma palavra que Horácio usou para se aproximar do nome do Deus infernal Vedius (TUPET, 1976, p. 297).


No Épodo V, intitulado Contra Canídia feiticeira, Horácio irá relatar a morte cruel de uma criança para a preparação de um filtro de amor. Outros autores, como Lucano (Farsália) fizeram alusão a este tipo de crime que era uma crença popular no período. (BAROJA, s.d. p. 56). Assim como a morte de uma criança com finalidades mágicas acreditava-se que as mulheres grávidas eram sacrificadas para tirar delas o feto. A morte de uma criança é assassinato forçosamente premeditado, recaindo sobre a Lex Cornelia de sicariis et veneficiis. Uma inscrição encontrada no Esquilino, no túmulo de Iucundus, uma criança de quatro anos, nos remete a tradição desta crença em mortes de crianças com finalidades mágicas.
A feiticeira de mão cruel me arrancou a vida (Eripud me saga manus crudelis); enquanto esteja sobre a terra e faça dano com sua arte, vós, pais protegei vossos filhos! (MONTERO, 1996, p. 184).
As feiticeiras portam os cabelos soltos e em desordem, assim, como Medéia que é descrita sempre com cabelos sobre os ombros. Canídia traz ainda pequenas serpentes sobre seus cabelos. De acordo com Anne-Marie Tupet (1976, p. 288), a idéia de trazer serpentes nos cabelos está associada à certas divindades infernais, como Hécate e as Fúrias. Tal representação era comum entre os poetas e artistas da Antigüidade que se referiam sempre à personagens mitológicos em suas obras.
Em um ritual de consagração do local aparece a feiticeira Veia. Ela corre desesperadamente, borrifa a terra, cava o solo e arruma a cova onde a criança será enterrada. Nesta mesma passagem, Horácio descreve o local onde estão as feiticeiras: uma casa. Veia demonstra estar em um estado de agitação, ela corre pela casa com os cabelos arrepiados e sem remorso de praticar um ato tão cruel.

Outra feiticeira aparece nos próximos versos, é Folia, que faz descer a lua do céu e que segundo o próprio poeta não podia faltar no ritual. A lua, símbolo da noite está presente nas representações de rituais mágicos, propicia aos mistérios e ao secreto, é na noite, que por sua obscuridade favorável às obras infames e ao crime, que as feiticeiras praticam seus rituais tendo sempre a lua como fundo do cenário nos poemas.





A Sátira VIII, conhecida como Refere-se Priapo às feiticeiras Canídia e Sagana ou O Deus Priapo contra as feiticeiras Canídia e Sagana, é considerada pelos críticos da obra de Horácio como a sátira de caráter mais agressivo escrita pelo poeta. Neste poema, Horácio imagina um tronco de figueira no qual foi esculpida a figura do Deus Priapo, assistindo a cena que a já conhecida Canídia, feiticeira dos Épodos, e sua companheira Sagana procedem encantamentos e magias.
Diferente do Épodo V, a Sátira VIII não possui um tom trágico e sim um humor satírico. O local do ritual é o Esquilino, antigo cemitério de escravos e pobres que Mecenas transformou em um grande jardim, onde as feiticeiras vão buscar ervas e ossos. Quem descreve toda cena é o indignado espantalho de madeira, imagem do Deus Priapo.
Como no Épodo V, as feiticeiras encontram em um grande estado de agitação, elas escavam a terra com as unhas e rasgam um cordeiro com os dentes, um gesto sem dúvida ritual, mas que implica em uma profunda agitação. Segundo Anne-Marie Tupet (1976, p. 293), as feiticeiras da Antigüidade conheciam as propriedades de drogas tóxicas de origem vegetal, o uso destas drogas poderia ser a causa destes estado de transe e movimentação rápida durante os rituais.
Tal representação mais do que uma fantasia do poeta poderia reproduzir uma realidade da feitiçaria antiga. Também na Écloga VIII de Virgílio, pode ser notado este estado de agitação da feiticeira. Anne-Marie (1976, p. 301) acrescenta que este é um gesto ritual comum, praticado pelas bacantes que usavam vinho para entrar em êxtase. As drogas, o haxixe em especial, eram absorvidas como poções, fumo ou ungüentos.
Horácio coloca Canídia, como no Épodo V, com os cabelos soltos e em desordem, o que talvez fosse uma forma usada pelo poeta para lhe conferir um aspecto engraçado. Seus trajes são reconstruídos pelas indicações do poeta: Canídia usa uma longa toga preta e tem os pés descalços, já em Horácio notamos um estereótipo comum às feiticeiras que dura até os dias atuais.
Nos versos acima vemos uma descrição cômica e satírica das feiticeiras, que lhes expõe ao ridículo. Canídia perde os dentes e Sagana, de cabelos arrepiados, deixa as ervas que recolheu no cemitério cair dos braços. O fato dos dentes de Canídia caírem pode nos indicar o uso de uma dentadura o que poderia se referir à idade da personagem como uma mulher um pouco mais velha.
No Épodo XVI, intitulado À Canídia, temos o poeta pedindo à feiticeira que não mais use de seus feitiços e não se volte contra ele por tê-la atacado em seus versos. Ele associa os feitiços ao mal, ao inferno, pede por Prosérpina, a Perséfone romana, e por Diana, as mesmas deusas que as bruxas pedem por ajuda, Horácio ainda se mostra crente no poder da magia.




O poeta fala da punição se referindo à sua idade e trata Canídia com carinho. Ele escreve sobre perfumes ao se referir às poções mágicas, o que pode fazer uma alusão ao que é colocado por alguns estudiosos de ser Canídia uma famosa perfumista amiga de Horácio. Mais uma vez ele mostra acreditar nos sortilégios e pede para que Canídia não se vingue dele. Horácio demonstra Ter medo das feiticeiras. A. Kiessiling e R. Heinze (TUPET, 1976, p. 329) acreditam que o acúmulo de medo e a inquietude dos espíritos supersticiosos pode ser traduzida em um sentimento irônico de superioridade sobre as coisas, o que Horácio parece fazer na Sátira VIII, assim, para este poeta a magia deve ser ridicularizada à fim de sua desmistificação. (grifo nosso).
No Épodo XVII, intitulado Resposta de Canídia, Horácio escreve como em uma simulação as respostas da feiticeira a seus conjuros. Ela diz não perdoar o poeta que através de seus versos a tornou a fábula do povo. Canídia responde que não irá matá-lo, mas o desgraçará, seus dias serão mais longos e ele preferirá a morte.

Típico filho da elite romana, Ovídio nasceu na cidade do Lácio e provinha de uma família eqüestre. Quando jovem foi para Roma continuar seus estudos. Diferente de Horácio, Ovídio não simpatizava com as condições políticas de sua época, acreditando que Augusto governava como um monarca despótico apesar do esforço para demonstrar o contrário. O poeta pertencia a uma geração que não se formou em meio à guerra civil e, embora bastante capaz de produzir um poema patriótico, já não se interessava muito pelo nacionalismo e pela moral augustana. Freqüentando as cortes dos poetas profissionais, notadamente a de Messala, adversário de Augusto, não alcançou as simpatias do Imperador como Horácio e Virgílio.

No ano de 8 d.C., o poeta foi mandado para o exílio em Tomos (atual cidade de Constância na Romênia). Ele descreve as acusações que o levaram a esse resultado como “um poema e um erro”, referindo-se ao poema Arte de amar, considerado demasiado imoral para padrões impostos por Augusto, pois Ovídio ria cinicamente da sociedade metropolitana refinada. O erro de que o poeta fala, pode estar relacionado com o adultério da neta de Augusto. Conforme nos indica Grant (1987, p. 238) “o Imperador talvez suspeitasse que Ovídio sabia demais e não se calara sobre o que sabia”. A maioria dos historiadores acredita que o envolvimento do poeta nos escândalos de Julia foi o fator do exílio de Ovídio, pois Augusto não queria ver sua obra moralizadora ridicularizada com as atitudes de sua neta.

O tema freqüente da poesia de Ovídio foi o amor[vii], não deixando porém de retratar a feitiçaria antiga. Em Ovídio a bruxa é uma alcoviteira, ela aparece como uma velha má e há referências ao arquétipo da bruxa antiga: Medéia. Poderosa ela faz, na Canção VIII dos Amores, rios voltarem às suas fontes, o céu abrir, renasce o dia, retira sangue da lua, cava um buraco no chão com as próprias unhas, assim como os cães e as bruxas de Horácio na Sátira VIII.
5) A representação da feitiçaria feminina como um veículo de moralização ao homem romano
Acreditamos que se analisarmos que tais fontes foram escritas por homens e não serão lidas por mulheres, mas pelos próprios homens de uma mesma camada social, notamos que estas obras são, dentro das motivações de cada uma, formas de veiculação moral e valores estabelecidos sobre a condição feminina para os próprios homens. Tanto o satírico Horácio, quanto o elegíaco Ovídio, buscam definir um campo de conduta e um domínio de regras válidas para o comportamento do homem romano, colocando a feitiçaria como uma prática essencialmente feminina, indigna do ideal guerreiro do homem romano, cruel, maléfica e que deve ser punida. Tais poemas demonstrariam, desta forma, uma forte expressão da diferença do gênero para os romanos, do que jamais é permitido ao homem, do que é ridículo e típico de mulheres.

No âmbito simbólico estas referências a práticas mágicas como basicamente femininas, aludiriam a uma natureza descontrolada da mulher. Diferente ao homem, elas não medem esforços para conseguir o que querem, se amam usam até mesmo da arte maléfica e punida que é a magia.

Entendemos ainda que tais poemas eram formas de Horácio e Ovídio demonstrar preocupações comuns da transição República-Império, preocupações com a moral do romano atingida pelas influências estrangeiras, manutenção das tradições e do mos maiorum (costumes dos ancestrais) e reconhecimento de uma identidade do romano, colocando sempre a magia como algo estrangeiro. Assim, a magia estaria como a cobiça, a avareza, o adultério, temas também criticados por Horácio, difundida no período e colocando em risco o patrimônio ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana e que se precisava manter. Os poetas alertam a sociedade também para os perigos da liberdade que as mulheres vinham adquirindo neste período. Os casamentos encontravam-se mais livres e Augusto criou mecanismos que puniam adultérios.

Acreditamos, ainda, que mesmo que Ovídio não pregue os mesmos idéias morais que Augusto e Horácio pregavam, ele não deixa de estar inserido em uma sociedade patriarcal e ver práticas punidas e criticadas, como a magia, como imorais ao homem romano. Segundo Glaydson José da Silva (2001, p. 39), devemos considerar que para a elegia a preocupação com “’que’ de humor, de ironia permeando os textos, dando sempre a entender a existência de segundas intenções por parte dos autores”.

Moldando um diálogo com a camada social que fazem parte, as representações criadas por estes poetas para a feitiçaria nos remeteriam a teoria de Roger Chartier. Para Chartier (1988, p. 17), os grupos sociais criam suas representações do mundo social, de maneira a impor seus limites e valores, forjando representações determinadas por seu interesse de grupo.

Devemos considerar, também, a existência de uma crença generalizada no poder feminino em agir de maneira sobrenatural que remonta às sociedades antigas clássicas. Excluída dos cultos oficiais e afastada para um lugar marginal, viam na mulher uma maior probabilidade a aproximar-se de práticas consideradas desviantes. Porém, para o mundo romano, objeto de nosso trabalho, as fontes arqueológicas comprovam uma superioridade masculina no âmbito da magia, através dos defixios. Também as acusações de magia do período remetem a um universo masculino, como por exemplo, as acusações contra o liberto Furio Cresimo (II séc. a.C.) e contra o filósofo Apuleio (II séc. d.C.). Acreditamos que a preponderância do masculino na prática diga respeito às próprias relações de poder no mundo antigo, limitadas à participação feminina, assim os casos mais freqüentes de imprecações mágicas (disputas esportivas, comercias, jurídicas) ficavam restritas aos homens que usavam da magia, considerada como formação de poderes paralelos dentro do Império, temida e perseguida pela autoridade oficial.

Portanto, a mulher por não ser considerada um perigo iminente a ordem política, não participar diretamente do “jogo de forças”, não representava um perigo maior que o homem quando praticante de magia, o que estava de fato em perigo eram as tradições que deviam ser mantidas, o poderio romano, a identidade construída em um momento de transição política. Práticas desviantes, temidas e ridicularizadas jamais poderiam ser algo masculino, principalmente para a elite detentora do poder político da qual faziam parte ambos os poetas.



6) Bibliografia
6.1) Fontes documentais

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________. Os Fastos. Tradução de Antonio Feliciano de Castilho. São Paulo: Jackson Editores, 1952.

6.2) Fontes bibliográficas
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CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela de Galhardo, Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand, 1988.
FRAZER, James. O ramo de ouro. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Círculo do Livro: 1978.
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GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70. Lugar da História, 1992.
GRAF, Flitz. La magie dans l’ Antiquité greco-romaine. Ideologie et Pratique. Paris: Les Belles Lettres, 1994.
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MONTERO, Santiago. Deusas e adivinhas. Mulher e adivinhação na Roma Antiga. Tradução de Nelson Canabarro. São Paulo: Musa Editora, 1998. (Ler os clássicos).
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RUSSELL, Jeffrey Burton. História da Feitiçaria. Feiticeiros, hereges e pagãos. Tradução de Álvaro de Cabral. Rio de Janeiro: Campus, 1993.
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TUPET, Anne-Marie. La magie dans la poesie latine. Des origines à la fin du régne d’Auguste. Vol. 01. Paris: Les Belles Lettres, 1976.


Notas:
[i] Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Aproveito o presente espaço para agradecer ao Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva que tem se mostrado sempre solícito às minhas pesquisas. Agradeço também minha orientadora, Profª. Drª. Margarida Maria de Carvalho, pelo apoio constante.

[ii] Estas imprecações mágicas foram encontradas pelos arqueólogos em finas lâminas de chumbo, conhecidas como defixios pelos romanos e kátadesmos pelos gregos. O nome destas plaquetas sugere a idéia de ligação de uma pessoa ao mundo subterrâneo. Ver mais detalhes sobre estes objetos mágicos no texto de Maria Regina Cândido (2002, p. 23-34).

[iii] Festa romana celebrada no dia 15 de fevereiro, provavelmente em honra ao Deus Fauno. Era um rito de fertilidade, seus celebrantes se reuniam em uma caverna do monte Palatino, onde se supunha que Rômulo e Remo haviam sido amamentados pela loba. Na ocasião realizavam-se sacrifícios de animais e uma corrida em torno do Palatino. Durante a corrida, mulheres posicionadas em torno do monte recebiam chicotadas (o chicote era considerado um objeto de purificação e fertilidade), o que acreditava transmitir fertilidade (HARVEY, 1998, p. 317). Este rito pode ser caracterizado dentro da Lei de Similaridade ou Magia Imitativa, estabelecida pelo antropólogo James Frazer (1978, p.19).

[iv] Esta mesma distinção entre magia enquanto theurgia e magia enquanto goetia é feita por autores da época como Apuleio ao defender-se de uma acusação de praticante de magia (APULEIO, Apologia, XLIII, 2- 6).
[v] Diana, deusa da caça está associada á deusa Ártemis grega, que por sua vez está associada a Hécate, ver mais sobre esta analogia em: SARIAN, 1997. Esta deusa aparece tanto neste poema como na Sátira VIII.
[vi] Conhecidas também sob a denominação de Erínies, as Fúrias eram divindades que vingavam crimes, especialmente aqueles contra parentes. Em número de três, Alectó, Mêgaira e Tisífone, são representadas como mulheres aladas.
[vii] Ovídio escreveu elegias. Inicialmente definida pelo metro específico, chamado metro elegíaco, a elegia passou a designar um gênero poético que se caracterizou não pela forma, mas pelo assunto: o amor, a tristeza dos amores interrompidos pela infidelidade ou pela morte.
[viii] A Hemônia era como um nome poético para a Tessália, terra consagrada das feiticeiras. (nota de rodapé n.24 da obra citada). Destacamos que a novela fantástica O asno de ouro de Apuleio, onde há descrições de rituais de magia, se passa justamente nesta famosa região das artes mágicas.
[ix] Aqui Ovídio reproduz fielmente o texto da Lei das XII Tábuas (Tábua VII) sobre o crime de prática de magia, que pune àquele que acreditavam ter o poder de transportar colheitas de um campo para o seu, ou seja, jogar “mau olhado” sob a colheita alheia, roubando-a.

[x] Região de onde veio Medéia, segundo a lenda da tragédia homônima.
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Livros de Ana Teresa Pereira

A Sedução do Diabólico
Anabela sardo
Publicado na Ciberkiosk


I - A sedução do diabólico

Dos livros de Ana Teresa Pereira se pode dizer que o que neles se pensa, se está sentindo. O eu não se objectiva em situações convencionais e as palavras não chegam para revelar a vida. Só parcialmente o fazem. Exprimir a existência que nos singulariza implica uma depuração constante da linguagem para que a palavra se abeire da verdade. Aproximar-se da linguagem que não atraiçoa, "a linguagem dos pássaros" (p.133), ou uma muito próxima, surge como um desejo na obra desta autora, que procura ultrapassar a linguagem da razão, embebendo-a de emotividade, tentando derramar o que está para além do visível.
Os seus livros esboçam o ininteligível e são, cada vez mais, enigmáticos, povoados de imagens simbólicas, obscuras e misteriosas, reflectindo a relatividade das coisas visíveis, expressando a convicção de que, em termos do universo como um todo, o visível é apenas um exemplo isolado e que outras verdades existem, latentes. As imagens sugerem mais do que descrevem e o simbolismo, por vezes irracional, aponta para o invisível, deixando espaço ao leitor para compreender, como se afirma numa das obras anteriores, "os enigmas da vida e da morte como se fosse um jogo".
Há, contudo, um excesso do eu onde a palavra não chega e só é acessível à Arte, que não explica, antes metamorfoseia as emoções através de símbolos, abrindo espaço ao silêncio. A Arte (a pintura, a música e o cinema), associada à Literatura, torna-se a voz das profundezas, anunciando um sentir radical no eco de uma memória perdida. A visão simbólica define a magia da arte de Ana Teresa Pereira, que, através de um universo de analogias, parte e volta ao literário na forma da escrita.
No livro Se Eu Morrer Antes de Acordar, reaparece o universo obsessivo da autora dentro de um quadro de mistério ontológico. As obsessões renascem, filtradas por um onirismo suspenso que envolve os seus textos na aura mágica dos contos de fadas. A presença do esotérico, o gosto pelo non-sens e pela expressão de um erotismo constante interliga-se com um etéreo lirismo de sugestão romântica.
Belas personagens, estranhas e enigmáticas, as mesmas de sempre, seduzidas diabolicamente pelo outro lado, abandonaram definitivamente o mundo normal para viverem, ambiguamente, numa espécie de irrealidade, num "mundo paralelo" (p.125).
Os acontecimentos não são como na realidade, mas como preenchem os sonhos que não se separam dos pesadelos. Assim, a realidade converte-se em irrealidade, os anjos são demónios, e os deuses e as feiticeiras misturam-se com as pessoas normais. E, em deleitáveis e fádicos lugares, desvendam-se pormenores ameaçadores e terríveis.
As flores e os perfumes envolvem os espaços obsessivos (a casa, a biblioteca, o quarto, o jardim, o mar), que ressurgem rodeados pela magia a que textos anteriores foram habituando o leitor, e interligam os diferentes contos. Aparecem estreitamente relacionados com as personagens excepcionais e inusitadas e ligam-se a imagens íntimas, imagens de livros, quadros e filmes.
A dimensão temporal revela-se indefinida, numa espécie de tempo suspenso, tudo acontecendo desde sempre e para sempre, porque existe "todo o tempo do mundo" (p.50). Está presente uma concepção de tempo que nada tem a ver com o tempo linear e limitado de cada ser. A ideia do eterno retorno transparece em alusões, símbolos e enigmas, os acontecimentos repetindo-se numa circularidade sem fim, que as personagens sentem, ambiguamente, como a "sua condenação" e a "sua bênção" (p. 50), e que provoca, no leitor, indeléveis impressões labirínticas. A esta concepção de tempo alia-se todo um simbolismo cósmico que marca o retorno ao centro e a possibilidade de uma transcendência que admite que a morte não é mais do que uma porta por onde passa o ciclo da vida. Afirma-se a existência do ser na negação do tempo e aproxima-se o tempo humano à regularidade cíclica do tempo divino.
"As pessoas felizes não têm história" (p.90). Assim, estes textos contam histórias em que a questão do amor é tratada de forma trágica. Metaforizada ao longo dos textos pela relação entre uma mulher e um homem, e essa mesma mulher e um outro homem que não tem existência tangível, parece insinuar-se que o amor é eterno, não finito no tempo e independente de toda a contingência limitativa, a pulsão fundamental do ser que assegura a continuidade e coesão interna do cosmos. Contudo, no decorrer dos textos, fica a certeza de que as personagens de Ana Teresa Pereira vivem num mundo sem amor, limitando-se a cumprir tarefas pré-determinadas às quais é impossível escapar. E todos os relacionamentos reais, que poderiam conduzir a experiências de amor concreto, são totalmente abandonados pelas personagens que fantasmas adormecidos, entretanto despertados, perturbam e arrebatam. E, por isso, o seu mundo é de silêncio, solidão e medo. Atraídas, inexoravelmente, pelo outro lado, elas anseiam recordar "a sua história, uma só, esquecida" (p.49), numa obsessão pelo essencial e na tentativa de reencontrar a memória remota da unidade primordial.
Tom, a personagem que perpassa a obra de Ana Teresa Pereira, ressurge misteriosamente, nos quatro contos, determinando os acontecimentos. O tipo de atracção que Tom exerce, e o poder que lhe é conferido, parece resultar da teia de imagens que a personagem feminina, delineada com poderes que ultrapassam o conhecimento e a vontade, constrói à sua volta, dos desejos que nele projecta e do encantamento paralisante do outro lado, que a impede de ver para além das suas fantasias. O carácter sedutor e destrutivo de Tom, "anjo, homem, pássaro" (p.41), belo e terrível, que é um deus, que é um monstro, é explorado sob a perspectiva do fascínio irresistível do desvelamento de "todos os segredos" (p.129) e da atracção física. Ele possui um rosto antigo, um olhar cinzento e forte e envolve as personagens (a personagem), dominadas por um enorme desejo, nas suas "asas negras" (p.153). E, estranhamente, esta é a protecção de que precisam, onde se sentem bem, com medo, nos braços dos "deuses" que são "monstros", um pintor, um músico, um poeta...
No primeiro conto, que tem como título «Anamnese», Tom convoca a ideia de fascínio, tentação e medo e é apontado como um "ser da noite" (p.49), "um anjo negro"(p.50) que proporciona a Carla " uma felicidade feita de calor, de desejo, de sangue, anterior à pele, ao pensamento, talvez mesmo ao instinto" (p.51), afastando-a de Daniel, o seu "anjo branco" (p.48). Tal como Carla, também Marisa, Patrícia ou Iris (as personagens dos restantes três contos) representam a tendência manifesta de se centrar em si próprio e organizar a realidade, enquadrando-a dentro dos seus padrões e esquemas de significação, numa espécie de "nadar dentro de si" voltado "para dentro" (p.183).
Os quatro contos traçam os percursos da sedução obsessiva e diabólica do centro, do essencial e da unidade, inscrevendo-se numa espécie de tragicidade. E, embora se manifestem possibilidades de fuga a esse aprisionamento, elas são afastadas pelas personagens para quem o mundo, feito de imagens, visões geladas e pesadelos, é um lugar estranho e aterrador. E nem o sol consegue desvanecer o terror e a certeza de que tudo se reescreve "infinitamente" (p.128) e que, afinal, "as rosas, como as esmeraldas," têm "origem no inferno" (p.99).

II - Os irresistíveis anjos caídos

Nos livros anteriores de Ana Teresa Pereira, as personagens debatiam-se com a impossibilidade de permanecer no aparente mundo real, o lado de cá, bem como com a de passar para o outro lado, a não ser através da morte. Em Se Eu Morrer Antes de Acordar, na sequência do que tinha sido delineado em O Rosto de Deus, todas as ligações com o mundo real desaparecem por completo e as personagens encontram-se definitivamente do outro lado.
No primeiro conto, Carla, que diversos indícios apontam como sendo uma feiticeira, tem plena consciência do lado a que pertence e, por esse motivo, aceita a sua natureza, porque ela "não pertencia ali, estava do lado das trevas, as trevas frias (e o calor das asas, de desejo), o caos sobre o qual nenhuma luz pairava. E estava certo" (p.48). O seu lado é o de Tom, repetindo a mesma história desde sempre e para sempre, porque, "de qualquer forma...das formas mais estranhas..." é sempre com ele que ela vai ter. O seu destino é o mesmo das outras mulheres, cujos túmulos encontra, porque, tal como refere o poema de William Blake, que paira no texto, «his dark secret love / Does thy life destroy» (p.44).
No segundo, «Flores para uma feiticeira», revela-se a incapacidade de escapar àquilo que funciona efectivamente como uma espécie de destino, uma teia de pré-determinação que submete todos os que procuram os segredos das palavras. Marisa, uma criatura estranha, com "aquela beleza de anjo selvagem" (p.57), cujos olhos escondem "mistérios talvez terríveis"(p.69), pertence, sem o saber, a uma linhagem de feiticeiras. Não pode, apesar do seu desconhecimento consciente, escapar ao instinto, à "coisa que ela era", à "sua verdadeira natureza" (p.76), que Paulo (Tom) acaba por descobrir. O mesmo acontecerá à sua filha que, ao contrário da mãe tem "o conhecimento antigo, que vinha do fundo dos tempos" (p.93), que lhe permite saber quem é.
O conto «Pássaro Quase Mortal da Alma» repete e esclarece alguns aspectos que vinham aparecendo obsessivamente, ao longo dos livros anteriores, sem se afastar do esquema estabelecido pelos dois contos precedentes e pelo último que dá o título ao livro. Patrícia, uma jovem que ainda não completara vinte e cinco anos, como as duas mulheres dos contos já focados, responde a um anúncio para ir organizar uma biblioteca numa casa particular. A casa, que se chama o Castelo, fica num lugar estranho "num vale perdido entre montanhas, um lugar solitário, longe do mundo" (p.101), como todos os lugares que procuram as personagens de Ana Teresa Pereira. Um lugar dos livros, silencioso e ermo, de uma beleza absoluta, envolvido por um mistério acolhedor, "a prisão dos pássaros e das estrelas" (p.121).
Tal como na primeira história, também é com Tom que Patrícia vai querer ficar, para sempre. Tom é o dono da casa, um homem novo que é velho, que é um pássaro, que é um anjo e tem aquela beleza terrível, sedutora e diabólica, que olha para Patrícia "como se olha algo que nos pertence, que é parte de nós" (p.115) e a prende para sempre. Tom e Patrícia repetem a história ancestral que ela encontrara dispersa num livro, como uma longa pintura.
É O Livro de Henoch, diversas vezes referido ao longo dos textos da autora, que aparece subjacente e Tom é um anjo caído, detentor do conhecimento que vem do fundo dos tempos, e que ensina todos os segredos. Carla/Marisa/Patrícia/Iris amam Tom com um desejo sensual e intenso, "tornando o seu corpo um só com o dele" (p.45).
Patrícia aprende a "linguagem dos pássaros" (p.133) e sofre uma metamorfose. A linguagem dos pássaros, ou uma muito próxima, é aquela que a maioria dos humanos teria esquecido, por completo, a linguagem do mundo, aquilo que eram. E só alguns, muito poucos, ainda se vão lembrando dela, os alquimistas, os padres que negaram a existência de Deus, alguns músicos... poucos poetas (cf. p.133).

III - A nostalgia da unidade

Nestes contos, reaparece um tópico recorrente e fundamental em Ana Teresa Pereira e que remete para um peculiar conceito de felicidade, "que não é felicidade, é outra coisa". Este estado de "felicidade" resume a busca constante das personagens: a realização da unidade. No primeiro conto, Carla recorda, do outro lado das rochas, junto de Tom, "através daquele amor que (...) vinha do fundo do poço do tempo" (p51), a sua história. Olha para dentro da sua bola de cristal e não vê "nada. Nem mesmo o seu reflexo (...). Apenas os insondáveis castelos de gelo, onde não havia nada (...) A bola de cristal inteira, perfeita, a unidade realizada. E estava certo" (p.51).
Em «Flores para uma feiticeira», Paulo é Tom que acaba por reconhecer, em Marisa, a mulher do primeiro conto e perceber que ambos se procuravam, nas noites de nevoeiro, "porque se sentiam incompletos, porque só juntos atingiriam a unidade" (p.87). E Patrícia, de «Pássaro quase mortal da alma», atinge, através de Tom, " a unidade, a presença absoluta. Como Deus. (...) Mesmo antes de Deus (...) quando a luz e as trevas eram uma coisa só" (p.139).
No último conto, «Se eu morrer antes de acordar», não restam dúvidas de que Iris é Patrícia e de que Patrícia é Marisa que é Carla. E Tom, o mesmo Tom de sempre, o duplo, manifestação do inconsciente que, sob mil formas, se exprime apenas por enigmas. Tom é, diabolicamente, a negação do eu e o outro do eu, que impede a visão do outro exterior.

IV - A paixão da Literatura

Destes textos se desprende a inegável certeza de que nada de mais fundamental existe que a escrita, o mais importante entre os segredos revelados, "a causa de que muitos homens se perdessem desde sempre e para sempre" (p.133).
Os livros de Ana Teresa Pereira vivem de outros livros, das imagens que percorrem os tempos e forjam a existência humana. É um território onde se pode conciliar o inconciliável, realizar o inexequível. As personagens, sempre especiais, têm a imaterial consistência dessas imagens, o que lhes permite todas as metamorfoses. A sua vida depende da vontade do escritor, que se transforma num deus, ou num monstro, capaz de criar mundos dentro do mundo, dar a vida ou decidir a morte.
E é um desses deuses que a autora celebra no último conto. Iris Murdoch é uma referência constante, quase obsessiva, na obra de Ana Teresa Pereira. A forma como a escritora irlandesa emerge no texto revela a extrema admiração, quase uma forma de adoração, "—You were adored once, Iris. Tu és adorada... (p.184), por parte da autora de Se eu morrer antes de acordar. A elegia começa com a presença das citações preliminares, que servem de epígrafe ao primeiro e terceiro contos, e culmina no conto que dá título ao livro, porquanto se une, em Iris, a história de Iris Murdoch (ou a leitura que a autora faz de parte da sua vida) com as suas próprias histórias e obsessões. Iris é Iris Murdoch, mas é também Ana Teresa Pereira, na medida em que as personagens e os textos parecem revelar a imagem da escritora: "...não havia nenhum escritor vivo que lhe fizesse falta. Ted Hughes morrera, e Marguerite Duras, e a escritora que mais amava, e nenhum deles escreveria um próximo livro...» (p.170).

O Martelo das Feiticeiras

MALLEUS MALEFICARUM

Escrito em 1484 pelos inquisidores
Heinrich Kramer e James Sprenger



Breve Introdução Histórica
ROSE MARIE MURARO


Para compreendermos a importância do Malleus é preciso ter­mos uma visão ao menos mínima da história da mulher no interior da história humana em geral.

Segundo a maioria dos antropólogos, o ser humano habita este planeta há mais de dois milhões de anos. Mais de três quartos deste tempo a nossa espécie passou nas culturas de coleta e caça aos peque­nos animais. Nessas sociedades não havia necessidade de força física para a sobrevivência, e nelas as mulheres possuíam um lugar central.

Em nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como os grupos mahoris (Indonésia), pigmeus e bosquímanos (África Central). Estes são os grupos mais primitivos que existem e ainda sobrevivem da coleta dos frutos da terra e da pequena caça ou pesca. Nesses grupos, a mulher ainda é considerada um ser sagrado, porque pode dar a vida e, portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos animais. Nesses grupos, o princípio masculino e o feminino governam o mundo juntos. Havia divisão de trabalho entre os sexos, mas não ha­via desigualdade. A vida corria mansa e paradisíaca.

Nas sociedades de caça aos grandes animais, que sucedem a essas mais primitivas, em que a força física é essencial, é que se inicia a supremacia masculina. Mas nem nas sociedades de coleta nem nas de caça se conhecia função masculina na procriação. Também nas sociedades de caça a mulher era considerada um ser sagrado, que possuía o privilégio dado pelos deuses de reproduzir a espécie. Os homens se sentiam marginalizados nesse processo e invejavam as mulheres. Essa primitiva inveja do útero” dos homens é a antepassada da moderna “inveja do pênis” que sentem as mulheres nas culturas patriarcais mais recentes.

A inveja do útero dava origem a dois ritos universalmente encontrados nas sociedades de caça pelos antropólogos e observados em partes opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O primeiro é o fenômeno da couvade, em que a mulher começa a trabalhar dois dias depois de parir e o homem fica de resguardo com o recém-nascido, recebendo visitas e presentes... O segundo é a iniciação dos homens. Na adolescência, a mulher tem sinais exteriores que marcam o limiar da sua entrada no mundo adulto. A menstruação a torna apta à maternidade e representa um novo patamar em sua vida. Mas os adolescentes homens não possuem esse sinal tão óbvio. Por isso, na puberdade eles são arrancados pelos homens às suas mães, para serem iniciados na “casa dos homens”. Em quase todas essas iniciações, o ritual é semelhante: é a imitação cerimonial do parto com objetos de madeira e instrumentos musicais. E nenhuma mulher ou criança pode se aproximar da casa dos homens, sob pena de morte. Desse dia em diante o homem pode “parir” ritualmente e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das gerações...

Ao contrário da mulher, que possuía o “poder biológico”, o homem foi desenvolvendo o “poder cultural” à medida que a tecnologia foi avançando. Enquanto as sociedades eram de coleta, as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente das culturas patriarcais. Essas culturas primitivas tinham de ser cooperativas, para poder sobreviver em condições hostis, e portanto não havia coerção ou centralização, mas rodízio de lideranças, e as relações entre homens e mulheres eram mais fluidas do que viriam a ser nas futuras sociedades patriarcais.

Nos grupos matricêntricos, as formas de associação entre homens e mulheres não incluíam nem a transmissão do poder nem a da heran­ça, por isso a liberdade em termos sexuais era maior. Por outro lado, quase não existia guerra, pois não havia pressão populacional pela conquista de novos territórios.

E só nas regiões em que a coleta é escassa, ou onde vão se esgotando os recursos naturais vegetais e os pequenos animais, que se inicia a caça sistemática aos grandes animais. E aí começam a se instalar a supremacia masculina e a competitividade entre os grupos na busca de novos territórios. Agora, para sobreviver, as sociedades têm de competir entre si por um alimento escasso. As guerras se tornam constantes e passam a ser mitificadas. Os homens mais valorizados são os heróis guerreiros. Começa a se romper a harmonia que ligava a espécie humana à natureza. Mas ainda não se instala definitivamente a lei do mais forte. O homem ainda não conhece com precisão a sua função reprodutora e crê que a mulher fica grávida dos deuses. Por isso ela ainda conserva poder de decisão. Nas culturas que vivem da caça, já existe estratificação social e sexual, mas não é completa como nas sociedades que se lhes seguem.

E no decorrer do neolítico que, em algum momento, o homem começa a dominar a sua função biológica reprodutora, e, podendo controlá-la, pode também controlar a sexualidade feminina. Aparece então o casamento como o conhecemos hoje, em que a mulher é propriedade do homem e a herança se transmite através da descendência masculina. Já acontece assim, por exemplo, nas sociedades pastoris descritas na Bíblia. Nessa época, o homem já tinha aprendido a fundir metais. Essa descoberta acontece por volta de 10000 ou 8000 a.C. E, à medida que essa tecnologia se aperfeiçoa, começam a ser fabricadas não só armas mais sofisticadas como também instrumentos que permitem cultivar melhor a terra (o arado, por ex.).

Hoje há consenso entre os antropólogos de que os primeiros hu­manos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compará-los com o ciclo do próprio corpo. Mulheres também devem ter sido as primeiras plantadoras e as primeiras ceramistas, mas foram os homens que, a partir da invenção do arado, sistematizaram as atividades agrícolas, iniciando uma nova era, a era agrária, e com ela a história em que vivemos hoje.

Para poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nômades. São obrigados a se tornar sedentários. Dividem a terra e for­mam as primeiras plantações. Começam a se estabelecer as primeiras aldeias, depois as cidades, as cidades-estado, os primeiros Estados e os impérios, no sentido antigo do termo. As sociedades, então, se tor­nam patriarcais, isto é, os portadores dos valores e da sua transmissão são os homens. Já não são mais os princípios feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte. A comi­da era primeiro para o dono da terra, sua família, seus escravos e seus soldados. Até ser escravo era privilégio. Só os párias nômades, os sem-terra, é que pereciam no primeiro inverno ou na primeira escassez.

Nesse contexto, quanto mais filhos, mais soldados e mais mão-de-obra barata para arar a terra. As mulheres tinham a sua sexualidade rigidamente controlada pelos homens. O casamento era monogâmico e a mulher era obrigada a sair virgem das mãos do pai para as mãos do marido. Qualquer ruptura desta norma podia significar a mor­te. Assim também o adultério: um filho de outro homem viria ameaçar a transmissão da herança que se fazia através da descendência da mulher. A mulher fica, então, reduzida ao âmbito doméstico. Perde qualquer capacidade de decisão no domínio público, que fica inteira­mente reservado ao homem. A dicotomia entre o privado e o público torna-se, então, a origem da dependência econômica da mulher, e esta dependência, por sua vez, gera, no decorrer das gerações, uma sub­missão psicológica que dura até hoje.

E nesse contexto que transcorre todo o período histórico até os dias de hoje. De matricêntrica, a cultura humana passa a patriarcal.

E o Verbo Veio Depois

“No principio era a Mãe, o Verbo veio depois.” l~ assim que Marilyn French, uma das maiores pensadoras feministas americanas, começa o seu livro Beyond Power (Summit Books, Nova York, 1985). E não é sem razão, pois podemos retraçar os caminhos da espécie atra­vés da sucessão dos seus mitos. Um mitólogo americano, em seu livro The Masks of God: Occidental Mythology (Nova York, 1970), citado por French, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da criação. E, surpreendentemente, esses grupos correspondem às etapas cronológicas da história humana.

Na primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa mãe sem au­xílio de ninguém. Na segunda, ele é criado por um deus andrógino ou um casal criador. Na terceira, um deus macho ou toma o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho.

Essas quatro etapas que se sucedem também cronologicamente são testemunhas eternas da transição da etapa matricêntrica da humanidade para sua fase patriarcal, e é esta sucessão que dá veracidade à frase já citada de Marilyn French.

Alguns exemplos nos farão entender as diversas etapas e a frase de French. O primeiro e mais importante exemplo da primeira etapa em que a Grande Mãe cria o universo sozinha é o próprio mito grego. Nele a criadora primária é Géia, a Mãe Terra. Dela nascem todos as protodeuses: Urano, osTitãs e as protodeusas, entre as quais Réia, que virá a ser a mãe do futuro dominador do Olimpo, Zeus. Há também o caso do mito Nagô, que vem dar origem ao candomblé. Neste mito africano, é Nanã Buruquê que dá à luz todos os orixás, sem auxílio de ninguém.

Exemplos do segundo caso são o deus andrógino que gera todos os deuses, no hinduísmo, e o yin e o yang, o principio feminino e o masculino que governam juntos na mitologia chinesa.

Exemplos do terceiro caso são as mitologias nas quais reinam em primeiro lugar deusas mulheres, que são, depois, destronadas por deuses masculinos. Entre essas mitologias está a sumeriana, em que primitivamente a deusa Siduri reinava num jardim de delícias e cujo poder foi usurpado por um deus solar. Mais tarde, na epopéia de Gilgamesh, ela é descrita como simples serva. Ainda, os mitos primitivos dos astecas falam de um mundo perdido, de um jardim paradisíaco governado por Xoxiquetzl, a Mãe Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua, que são os Titâs e os Quatrocentos Habitantes do Sul (as estrelas). Mais tarde, seus filhos se revoltam contra ela e ela dá à luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli.

A partir do segundo milênio a.C., contudo, raramente se registram mitos em que a divindade primária seja mulher. Em muitos deles, estas são substituídas por um deus macho que cria o mundo a partir de si mesmo, tais como os mitos persa, meda e, principalmente e acima de todos, o nosso mito cristão, que é o que será enfocado aqui.

Javé é deus único todo-poderoso, onipresente, e controla todos os seres humanos em todos os momentos da sua vida. Cria sozinho o mundo em sete dias e, no final, cria o homem. E só depois cria a mulher, assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim das Delícias onde o alimento é abundante e colhido sem trabalho. Mas, graças à sedução da mulher, o homem cede à tentação da serpente e o casal é expulso do paraíso.

Antes de prosseguir, procuremos analisar o que já se tem até aqui em relação à mulher. Em primeiro lugar, ao contrário das culturas primitivas, Javé é deus único, centralizador, dita rígidas regras de comportamento cuja transgressão é sempre punida. Nas primitivas mitologias, ao contrário, a Grande Mãe é permissiva, amorosa e não­ coercitiva. E como todos os mitos fundantes das grandes culturas tendem a sacralizar os seus principais valores, Javé representa bem a trans­formação do matricentrismo em patriarcado.

O Jardim das Delícias é a lembrança arquetípica da antiga harmonia entre o ser humano e a natureza. Nas culturas de coleta não se trabalhava sistematicamente. Por isso os controles eram frouxos e podia se viver mais prazerosamente. Quando o homem começa a dominar a natureza, ele começa a se separar dessa mesma natureza em que até então vivia imerso.

Como o trabalho é penoso, necessita agora de poder central que imponha controles mais rígidos e punição para a transgressão. É preciso usar a coerção e a violência para que os homens sejam obrigados a trabalhar, e essa coerção é localizada no corpo, na repressão da sexualidade e do prazer. Por isso o pecado original, a culpa máxima, na Bíblia, é colocado no ato sexual (é assim que, desde milênios, popular­mente se interpreta a transgressão dos primeiros humanos).

E por isso que a árvore do conhecimento é também a árvore do bem e do mal. O progresso do conhecimento gera o trabalho e por isso o corpo tem de ser amaldiçoado, porque o trabalho é bom. Mas é interessante notar que o homem só consegue conhecimento do bem e do mal transgredindo a lei do Pai. O sexo (o prazer) doravante é mau e, portanto, proibido. Praticá-lo é transgredir a lei. Ele é, portanto, limitado apenas às funções procriativas, e mesmo assim é uma culpa.

Daí a divisão entre sexo e afeto, entre corpo e alma, apanágio das civilizações agrárias e fonte de todas as divisões e fragmentações do homem e da mulher, da razão e da emoção, das classes...

Tomam ai sentido as punições de Javé. Uma vez adquirido o conhecimento, o homem tem que sofrer, O trabalho o escraviza. E por isso o homem escraviza a mulher. A relação homem-mulher-natureza não é mais de integração e, sim, de dominação. O desejo dominante agora é o do homem. O desejo da mulher será para sempre carência, e é esta paixão que será o seu castigo. Daí em diante, ela será definida por sua sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho.

Mas o interessante é que os primeiros capítulos do Gênesis podem ser mais bem entendidos à luz das modernas teorias psicológicas, especialmente a psicanálise. Em cada menino nascido no sistema patriarcal repete-se, em nível simbólico, a tragédia primordial. Nos primeiros tempos de sua vida, eles estão imersos no Jardim das Delícias, em que to­dos os seus desejos são satisfeitos. E isto lhes faz buscar o prazer que lhes dá o contato com a mãe, a única mulher a que têm acesso. Mas a lei do pai proíbe ao menino a posse da mãe. E o menino é expulso do mundo do amor, para assumir a sua autonomia e, com ela, a sua maturidade. Principalmente, a sua nudez, a sua fraqueza, os seus limites. E à medida que o homem se cinde do Jardim das Delícias proporcionadas pela mulher-mãe que ele assume a sua condição masculina.

E para que possa se tornar homem em termos simbólicos, ele precisa passar pela punição maior que é a ameaça de morte pelo pai. Co­mo Adão, o menino quer matar o pai e este o pune, deixando-o só.

Assim, aquilo que se verifica no decorrer dos séculos, isto é, a transição das culturas de coleta para a civilização agrária mais avançada, é relembrado simbolicamente na vida de cada um dos homens do mundo de hoje. Mas duas observações devem ser feitas. A primeira é que o pivô das duas tragédias, a individual e a coletiva, é a mulher; e a segunda, que o conhecimento condenado não é o conhecimento dissociado e abstrato que daí por diante será o conhecimento dominante, mas sim o conhecimento do bem e do mal, que vem da experiência concreta do prazer e da sexualidade, o conhecimento totalizante que integra inteligência e emoção, corpo e alma, enfim, aquele conhecimento que é, especificamente na cultura patriarcal, o conhecimento feminino por excelência.

Freud dizia que a natureza tinha sido madrasta para a mulher por­que ela não era capaz de simbolizar tão perfeitamente como o homem. De fato, para podermos entender a misoginia que daí por diante caracterizará a cultura patriarcal, é preciso analisar a maneira como as ciências psicológicas mais atuais apontam para uma estrutura psíquica feminina bem diferente da masculina.

A mesma idade em que o menino conhece a tragédia da castração imaginária, a menina resolve de outra maneira o conflito que a conduzirá á maturidade. Porque já vem castrada, isto é, porque não tem pênis (o símbolo do poder e do prazer, no patriarcado), quando seu desejo a leva para o pai ela não entra em conflito com a mãe de maneira tão trágica e aguda como o menino entra com o pai por causa da mãe. Porque já vem castrada, não tem nada a perder. E a sua identificação com a mãe se resolve sem grandes traumas. Ela não se desliga inteira­mente das fontes arcaicas do prazer (o corpo da mãe). Por isso, também, não se divide de si mesma como se divide o homem, nem de suas emoções. Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoção e inteligência são mais integrados na mulher do que no homem e, por isso, são perigosos e desestabilizadores de um sistema que repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto, no conhecimento dissociado da emoção e, por isso mesmo, abstrato.

De agora em diante, poder, competitividade, conhecimento, controle, manipulação, abstração e violência vem juntos. O amor, a integração com o meio ambiente e com as próprias emoções são os elementos mais desestabilizadores da ordem vigente. Por isso é preciso precaver-se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de inter­ferir nos processos decisórios, fazer com que ela introjete uma ideologia que a convença de sua própria inferioridade em relação ao homem.

E não espanta que na própria Bíblia encontremos o primeiro indício desta desigualdade entre homens e mulheres. Quando Deus cria o homem, Ele o cria só e apenas depois tira a companheira da costela deste. Em outras palavras: o primeiro homem dá à luz (pare) a primei­ra mulher. Esse fenômeno psicológico de deslocamento é um mecanismo de defesa conhecido por todos aqueles que lidam com a psique humana e serve para revelar escondendo. Tirar da costela é menos violento do que tirar do próprio ventre, mas, em outras palavras, aponta para a mesma direção. Agora, parir é ato que não está mais ligado ao sagrado e é, antes, uma vulnerabilidade do que uma força. A mulher se inferioriza pelo próprio fato de parir, que outrora lhe assegurava a grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e do­mina a natureza.

Já não é mais o homem que inveja a mulher. Agora é a mulher que inveja o homem e é dependente dele. Carente, vulnerável, seu desejo é o centro da sua punição. Ela passa a se ver com os olhos do homem, isto é, sua identidade não está mais nela mesma e sim em outro. O homem é autônomo e a mulher é reflexa. Daqui em diante, como o pobre se vê com os olhos do rico, a mulher se vê pelo homem.

Da época em que foi escrito o Gênesis até os nossos dias, isto é, de alguns milênios para cá, essa narrativa básica da nossa cultura patriarcal tem servido ininterruptamente para manter a mulher em seu devido lugar. E, aliás, com muita eficiência. A partir desse texto, a mulher é vista como a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relação com a transcendência e também aquela que conflitua as relações entre os homens. Ela é ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, domínios que têm de ser rigorosamente normatizados: a serpente, que nas eras matricêntricas era o símbolo da fertilidade e tida na mais alta estima como símbolo máximo da sabedoria, se transforma no demônio, no tentador, na fonte de todo pecado. E ao demônio é alocado o pecado por excelência, o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o poder fica imune à crítica. Apenas nos tempos modernos está se tentando deslocar o pecado da sexualidade para o poder. Isto é, até hoje não só o homem como as classes dominantes tiveram seu status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram penalizadas como causa máxima da de­gradação humana.

O Malleus como Continuação do Gênesis



Enquanto se escrevia o Gênesis no Oriente Médio, as grandes culturas patriarcais iam se sucedendo. Na Grécia, o status da mulher foi extremamente degradado. O homossexualismo era prática comum entre os homens e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas às suas funções de mãe, prostituta ou cortesã. Em Roma, embora durante certo período tivessem bastante liberdade sexual, jamais chegaram a ter po­der de decisão no Império. Quando o Cristianismo se torna a religião oficial dos romanos no século IV, tem início a Idade Média. Algo novo acontece. E aqui nos deteremos porque é o período que mais nos interessa.

Do terceiro ao décimo séculos, alonga-se um período em que o Cristianismo se sedimenta entre as tribos bárbaras da Europa. Nesse período de conflito de valores, é muito confusa a situação da mulher. Contudo, ela tende a ocupar lugar de destaque no mundo das decisões, porque os homens se ausentavam muito e morriam nos períodos de guerra. Em poucas palavras: as mulheres eram jogadas para o domínio público quando havia escassez de homens e voltavam para o domínio privado quando os homens reassumiam o seu lugar na cultura.

Na alta Idade Média, a condição das mulheres floresce. Elas têm acesso às artes, às ciências, à literatura. Uma monja, por exemplo, Hrosvitha de Gandersheim, foi o único poeta da Europa durante cinco séculos. Isso acontece durante as cruzadas, período em que não só a Igreja alcança seu maior poder temporal como, também, o mundo se prepara para as grandes transformações que viriam séculos mais tarde, com a Renascença.

E é logo depois dessa época, no período que vai do fim do século XIV até meados do século XV III que aconteceu o fenômeno generalizado em toda a Europa: a repressão sistemática do feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de “caça às bruxas”.

Deirdre English e Barbara Ehrenreich, em seu livro Witches, Nurses and Midwives (The Feminist Press, 1973), nos dão estatísticas aterradoras do que foi a queima de mulheres feiticeiras em fogueiras durante esses quatro séculos. “A extensão da caça às bruxas é espantosa. No fim do século XV e no começo do século XVI, houve milhares e milhares de execuções - usualmente eram queimadas vivas na fogueira - na Alemanha, na Itália e em outros países. A partir de meados do século XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, começando pela França e pela Inglaterra. Um escritor estimou o número de execuções em seiscentas por ano para certas cidades, uma média de duas por dia, ‘exceto aos domingos’. Novecentas bruxas foram executadas num único ano na área de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas foram assassinadas num único dia; no arcebispado de Trier, em 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com duas mulheres moradoras cada uma. Muitos escritores estimaram que o número total de mulheres executadas subia à casa dos milhões, e as mulheres constituíam 85~Vo de todos os bruxos e bruxas que foram executados.”

Outros cálculos levantados por Marilyn French, em seu já citado livro, mostram que o número mínimo de mulheres queimadas vivas é de cem mil.

Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração em geração. Em muitas tribos primitivas eram elas as xamãs. Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres não tinham como cuidar da saúde, a não ser com outras mulheres tão camponesas e tão pobres quanto elas. Elas (as curadoras) eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas populares para todas as doenças.

Mais tarde elas vieram a representar uma ameaça. Em primeiro lugar, ao poder médico, que vinha tomando corpo através das universidades no interior do sistema feudal. Em segundo, porque formavam organizações pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, formavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos da cura do corpo e muitas vezes da alma. Mais tarde, ainda, essas mulheres vieram a participar das revoltas camponesas que precederam a centralização dos feudos, os quais, posteriormente, dariam origem às futuras nações.

O poder disperso e frouxo do sistema feudal para sobreviver é obrigado, a partir do fim do século XIII, a centralizar, a hierarquizar e a se organizar com métodos políticos e ideológicos mais modernos. A noção de pátria aparece, mesmo nessa época (Klausevitz).

A religião católica e, mais tarde, a protestante contribuem de maneira decisiva para essa centralização do poder. E o fizeram através dos tribunais da Inquisição que varreram a Europa de norte a sul, leste e oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que eram julga­dos heréticos ou bruxos.

Este “expurgo” visava recolocar dentro de regras de comporta­mento dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais ferozes excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e à guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres.

Era essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio mesmo do feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a sexualidade, conforme constata a obra de Michel Foucault, História da Sexualidade. Começa a se construir ali o corpo dócil do futuro trabalhador que vai ser alienado do seu trabalho e não se rebelará. A partir do século XVII, os controles atingem profundidade e obsessividade tais que 05 menores, os mínimos detalhes e gestos são normatizados.

Todos, homens e mulheres, passam a ser, então, os próprios controladores de si mesmos a partir do mais íntimo de suas mentes. E assim que se instala o puritanismo, do qual se origina, segundo Tawnwy e Max Weber, o capitalismo avançado anglo-saxão. Mas até chegar a esse ponto foi preciso usar de muita violência. Até meados da Idade Média, as regras morais do Cristianismo ainda não tinham penetrado a fundo nas massas populares. Ainda existiam muitos núcleos de “pa­ganismo” e, mesmo entre os cristãos, os controles eram frouxos.

As regras convencionais só eram válidas para as mulheres e homens das classes dominantes através dos quais se transmitiam o poder e a herança. Assim, os quatro séculos de perseguição às bruxas e aos heréticos nada tinham de histeria coletiva, mas, ao contrário, foram uma perseguição muito bem calculada e planejada pelas classes domi­nantes, para chegar a maior centralização e poder.

Num mundo teocrático, a transgressão da fé era também transgressão política. Mais ainda, a transgressão sexual que grassava solta entre as massas populares. Assim, os inquisidores tiveram a sabedoria de ligar a transgressão sexual à transgressão da fé. E punir as mulheres por tudo isso. As grandes teses que permitiram esse expurgo do femi­nino e que são as teses centrais do Malleus Maleficarum são as seguintes:

1) O demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível de almas.

2) E este mal é feito prioritariamente através do corpo, único “lugar” onde o demônio pode entrar, pois “o espírito [do homem] é governa­do por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas” (Parte 1, Questão 1). E porque as estrelas são inferiores aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar.

3) E este domínio lhe vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável de todos os homens.

4) E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por excelência do demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o demônio “porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher pode ser reta” (1,6).

5) A primeira e maior característica, aquela que dá todo o poder às feiticeiras, é copular com o demônio. Satã é, portanto, o senhor do prazer.

6) Uma vez obtida a intimidade com o demônio, as feiticeiras são capazes de desencadear todos os males, especialmente a impotência masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, abortos, oferendas de crianças a Satanás, estrago das colheitas, doenças nos animais etc.

7) E esses pecados eram mais hediondos ao que os próprios pecados de Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros pais por ocasião da queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Redentor (Cristo), e portanto este crime é imperdoável e por isso só pode ser resgatado com a tortura e a morte.

Vemos assim que na mesma época em que o mundo está entrando na Renascença, que virá a dar na Idade das Luzes, processa-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer. Tudo aquilo que já es­tava em embrião no Segundo Capítulo do Gênesis torna-se agora sinistramente concreto. Se nas culturas de coleta as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da natureza, agora elas são, por sua capacidade orgástica, as causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras se encontram apenas entre as mulheres orgásticas e ambiciosas (1, 6), isto é, aquelas que não tinham a sexualidade ainda normatizada e procuravam impor-se no domínio público, exclusivo dos homens.

Assim, o Malleus Maleficarum, por ser a continuação popular do Segundo Capítulo do Gênesis, torna-se a testemunha mais importante da estrutura do patriarcado e de como esta estrutura funciona concretamente sobre a repressão da mulher e do prazer.

De doadora da vida, símbolo da fertilidade para as colheitas e os animais, agora a situação se inverte: a mulher é a primeira e a maior pecadora, a origem de todas as ações nocivas ao homem, à natureza e aos animais.

Durante três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores e esteve na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, houve grande transformação na condição feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do diabo e, portanto, passível de punição. Reduzem se exclusivamente ao âmbito doméstico, pois sua ambição também era passível de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas.

É com a caça às bruxas que se normatiza o comportamento de homens e mulheres europeus, tanto na área pública como no domínio do privado.

E assim se passam os séculos.

A sociedade de classes que já está construída nos fins do século XVIII é composta de trabalhadores dóceis que não questionam o sistema.

As Bruxas do Século XX

Agora, mais de dois séculos após o término da caça às bruxas, é que podemos ter uma noção das suas dimensões. Neste final de século e de milênio, o que se nos apresenta como avaliação da sociedade industrial? Dois terços da humanidade passam fome para o terço restante superalimentar-se; além disto há a possibilidade concreta da destruição instantânea do planeta pelo arsenal nuclear já colocado e, principalmente, a destruição lenta mas contínua do meio ambiente, já chegando ao ponto do não-retorno. A aceleração tecnológica mostra-se, portanto, muito mais louca dos inquisidores.

Ainda neste fim de século outro fenômeno está acontecendo: na mesma jovem rompem-se dois tabus que causaram a morte das feiticeiras: a inserção no mundo público e a procura do prazer sem repressão. A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle da sexualidade e a reclusão ao domínio privado formam também os dois pilares da opressão feminina.

Assim, hoje as bruxas são legião no século XX. E são bruxas que não podem ser queimadas vivas, pois são elas que estão trazendo pela primeira vez na história do patriarcado, para o mundo masculino, os valores femininos. Esta reinserção do feminino na história, resgatando o prazer, a solidariedade, a não-competição, a união com a natureza, talvez seja a única chance que a nossa espécie tenha de continuar viva.

Creio que com isso as nossas bruxinhas da Idade Média podem se considerar vingadas!

O Beco da Sofia

A CASA DAS MOÇAS DAMAS

Uma menina curiosa, nos seus doze anos de idade, sob um olhar perscrutador, observava atenta as atividades de sua avó. Não era para menos. O local em que sua avó trabalhava chamava a atenção. Estava sempre repleto de pessoas, havia muito movimento, gente de todo tipo, de marinheiros a estudantes, de homens distintos a outsiders e uma vitrola sempre a ecoar enchendo o ambiente de música e alegria. Quando se aproximava da “casa” durante o dia, as moças-damas a evitavam. Ordens de Dona Sofia, ninguém poderia se aproximar e falar com sua neta. Mas a curiosa menina transgredia as fronteiras e penetrava neste espaço proibido, nos legando em suas memórias a atmosfera e o ambiente do que ficou conhecido em Friburgo como: “O Beco da Sofia” ou “O Beco das Oficinas”, porque na rua ficavam também as oficinas da companhia de trem. São as memórias de Wilma Villaça.

Sofia de Carvalho Villaça, ou Dona Sofia, como era conhecida, nasceu em Riograndina, em 17 de setembro de 1899, falecendo em 31 de maio de 1976. Uma negra muito bonita, elegante, que tinha paixão pelos bons perfumes e pelo jogo “dos bichos”. Foi casada com Galdino Neves Villaça, originário de Minas Gerais, com quem teve vários filhos. Viveram muitos anos em Riograndina numa fazenda onde plantavam café, até que uma dificuldade financeira os levou a vender a fazenda e se mudarem para Friburgo para recomeçar a vida. Na cidade, Sofia fazia salgados e doces “para fora” e Galdino biscates como jardineiro, mas veio uma crise no casamento e o casal se separou. Sofia era reconhecida como uma mulher de personalidade forte, autoritária, mas extremamente humana e sociável, e foi valendo-se destas características e de uma rede de relações, que no início da década de quarenta abriu em Friburgo uma “casa de moças-damas” que ficou também conhecida como a Casa da Sofia. A “casa” localizava-se na subida do cemitério, na Rua Gonçalves Dias, atrás do atual Cadima Shopping. Sofia não escolheu um local para montar tal estabelecimento nos arrabaldes da cidade, escondido, marginal e dissimulado. Ficava exatamente em frente à residência em que vivia com os seus filhos, todos bem criados e bem educados. Era uma extensão de seu lar, e daí talvez a atmosfera familiar que seu estabelecimento possuiu durante os mais de vinte anos em que existiu.

Mas a “Casa da Sofia” incomodava à vizinhança? Wilma afirma que não e justifica-se. Sofia ajudava a todos, fazia partos, comprava remédios, era conselheira, encaminhava em um emprego, já que era bem relacionada na cidade. Seu estabelecimento era freqüentado pela elite local, mas também pela arraia miúda que para lá se dirigia. Quanto a estes últimos, antes de ir para a Sofia, um gole de cachaça no bar do Justino, na Alberto Braune, na “esquina do pecado” ou bar “Grito de Mocidade”, mas neste local só entravam negros. Brancos não eram admitidos.
Sofia não fazia qualquer distinção social. O que apenas ocorria, e que os distinguia financeiramente, era que os mais abastados “reservavam” suas favoritas e somente com eles passavam a se relacionar. Tudo acertado previamente com Dona Sofia e contabilizado. Foi Jorginho Abicalil, quem descreveu em suas crônicas, como freqüentador habitué do local, um interessante relato da Casa da Sofia:

“.....Ah, Dona Sofia da gargalhada rouca! Da tosse, do Liberty Ovaes/ Da sua janela, fotografa a Leopoldina Railway, para receber seus reis/ que desejam gozar e viver./ São viajantes, caminhoneiros, H.T’s, marinheiros, fuzileiros navais/ todos reis, cada qual com uma menininha no colo/ e uma brahma casco escuro na mão,/ todos reis por uma noite de prazer./ E até os garotões metidos a sociais/ tudo gente de fino trato,/ lá estão no beco: escondidinhos em seu recato./ Estão todos vivendo o hoje das emoções,/ da mais antiga das profissões/ Todos enlevados pelos encantos das meninas/que ensinam prazeres do sexo./ Sexo bom, bem iniciado,/para nos deixar galantemente aliviados...”
A Casa da Sofia não recebia qualquer moça-dama. Verificava sua origem e antecedentes, sendo que todas elas vinham na maior parte de cidades do norte fluminense, a exemplo de Itaperuna. A Casa da Sofia era um casarão onde havia aproximadamente quinze quartos e um extenso salão, espaço comum para se ouvir vitrola, beber e dançar com as moças-damas. Cada uma delas tinha o seu quarto, alimentação garantida feita por uma cozinheira e serviço médico, onde pagavam, por isso, uma espécie de pensão. Nos programas feitos pelas moças-damas, Sofia recebia um percentual através de um sistema de fichas. Mulher de tino comercial tinha um médico fazia exames periódicos nas moças-damas, uma gerente e uma “caixinha” para a polícia não incomodar e ainda dar segurança, quando havia desordem provocada por baderneiros. O movimento iniciava por volta das 17:00 horas e terminava madrugada adentro. Somente os “rapazes da fundação” freqüentavam à tarde a “Casa da Sofia”, já que tinham que pegar o ônibus para a “subida da Fundação”. Frequentavam ainda os rapazes do H.T., como eram conhecidos na cidade. A sigla H.T., significava hospital dos tuberculosos. Eram marinheiros e fuzileiros tuberculosos que ficavam internados no Sanatório Naval. Certamente Dona Sofia só deixava que freqüentassem aqueles já convalescidos, pois sempre foi muito cuidadosa com a salubridade de seu estabelecimento. Dr. Feliciano Costa, médico do Sanatório Naval, era quem dava assistência à Casa da Sofia cuidando das meninas e autorizando os H.T´s que poderiam freqüentar o estabelecimento.

Possivelmente para atender a representação que fazia à época das cortesãs, Sofia recebia na maioria apenas moças brancas e “bem claras”, do tipo europeu. Não que houvesse preconceito por parte dela, mas o estereótipo da cortesã ainda vinha do imaginário masculino do final do século XIX, onde eram cortesãs as francesas, as polacas e as judias. As moças-damas trajavam vestidos longos, como os de baile, relembra Wilma, com uma maquiagem bem destacada e cabelos bem penteados, no estilo pin-up. Mas para sair à rua durante o dia, Dona Sofia exigia recato. Tinham que usar indumentária simples, sem maquiagem e terem um comportamento discreto.


ALAIR: A Gerente
Dona Sofia administrava e recebia os clientes, juntamente com sua gerente Alair. Altiva e de olhos agudos, mulher de porte, corpo de sereia, o salto alto de Sofia erguia-lhe ainda mais a fronte empinada. Impunha e ordenava com energia como no “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Ao som de Vicente Celestino e Gilda de Abreu, dançava-se à noite inteira. Seu estabelecimento estava sempre lotado e isto porque a Casa de Sofia, mais do que um espaço de prazer, era um lugar de sociabilidade. O rendez-vous da cidade. Muitos iam até lá somente para se divertir, “just for fun”, como dizem os americanos. Não buscavam somente o prazer carnal, mas os amigos que lá também freqüentavam ou quem sabe, em busca de um conselho e uma boa prosa com Dona Sofia. Foi da Casa de Sofia que muitos casamentos saíram. Muitos homens tiraram as moças-damas “da vida” e se casaram com elas. Sofia batizou muitas crianças destes enlaces. Os já casados “botavam casa”, vivendo amancebados com suas favoritas, tirando-lhes “da vida”.

Por fim, e o que mais impressiona nas memórias de Wilma Villaça, foi a tolerância da sociedade friburguense em relação à Casa da Sofia. Percebe-se que seu estabelecimento tinha uma função social. Afinal, vivíamos em uma época em que as moças casavam-se virgens e seus noivos “aliviavam-se” nestes locais. Quanto aos casados, aquela famosa desculpa de que as mulheres da vida, bruaca, bucho, bagaxa, cróia, cocote, fubana, frega, fuampa, jereba, quenga, marafona, murixaba, michê, marafaia, rongó, rameira, tronga, vulgívaga, zabaneira, zoina, andorinha, égua, gança, mariposa, loba, mulher errada, perdida, transviada, do mundo, pública, da rua, da rótula, da zona, do amor, de má nota, de ponta de rua, do fado e do fandango, serviam para práticas sexuais aos quais não se podia fazer com a esposa. Mulher tolerada, daí a tolerância?


O certo é que por onde Dona Sofia passasse além de ser respeitada, dava-se à ela uma deferência especial. O gerente de banco puxava a cadeira para ela sentar-se, recorda-se Wilma. A propósito, Wilma foi a única menina negra, à época, a matricular-se no tradicional e elitista Colégio Nossa Senhora das Dores. E o mais intrigante, é que já houve estabelecimentos deste tipo antes e depois da Casa da Sofia em Friburgo. Mas nenhum deles se perpetuou tanto na memória da cidade como a Casa de Sofia, que fechou em 1962. Talvez a resposta esteja em um dos seus habitués, Jorginho Abicalil: um local de “sacerdócio do prazer e da virtude”.

Fonte: Entrevista realizada com Wilma Villaça, neta de Dona Sofia e Crônicas de Jorginho Abicalil. Acervo de fotos pertencentes a Wilma Villaça

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